OUTRAS INSURGÊNCIAS


Carta escrita a uma amiga imaginária após a realização da performance “Já está limpo!”


Salvador, 19 de dezembro de 2010.

Ai... minha amiga. As coisas não estão fáceis por aqui. Muita coisa pra pouco corpo, muito pensamento pra uma cabeça só. Às vezes penso em largar tudo e ser uma dedicada dona de casa em Belo Horizonte. Acordar cedo, dar de comer ao meu filho, levá-lo a escola, estudar um pouco em casa, buscá-lo, passearmos na praça e, se for calor, tomar sorvete, e se for frio, tomar sopa. E sempre a espera de um convite para uma festinha no ap de alguém. Uma vidinha besta, sabe, como já descrevera Drummond. Mas ainda prefiro ficar aqui. É estranho... Mesmo com tanta dificuldade, sinto ser mais divertido, sinto que vai deixar de ser difícil. Ontem fiz o “Já está limpo!” na Praça da Sé. Miguel foi comigo. Justo neste dia teve paralisação na creche, aff! Antes da performance passei na escola de teatro e fiz um aquecimento com Ciane. Foi meio estranho. Ela cobrou perfeição no aquecimento Laban. Queria que eu acessasse lugares de amplitude através da técnica, sendo, que na verdade, queria me amplificar pelo silêncio. Miguel também fez o exercício. Junto a cada proposta de movimento ele soltava uma gargalhada e falava igual uma lavadeira. Quando, generosamente, Ciane me tocava para me mostrar a eficiência do alongamento, Miguel também me tocava, para eu ver a eficiência de estar no chão, respirando. Era uma mistura de várias coisas. Estava tensa. Tinha que dar almoço ao Miguel, carregar a parafernália da performance, dividir a atenção com o Miguel, vigiar as possibilidades de registro. Ai... Não vai dar certo... Como imergir num estado diferenciado? Como aproveitar a experiência? Como acalmar minha mente? Como não cair nas falácias do discurso? Que, diga de passagem, já estou cansada desse modo doce e consciente de fazer política com a fala! É lindo, ou mesmo emocionante, falar de subjetividade, elucidar problemáticas, medir pareceres, mas às vezes, sinto que é mais uma construção como todas as outras! Assisti um filme no passado, mas não lembro o nome, diretor e nem o nome de algum artista que pudesse identificar o filme, mas lembro que era uma produção francesa e a história passava em torno de uma clínica de psicanalistas em que todos aguardavam ansiosamente a visita de Freud. Enquanto o bambambã não chegava, coisas malucas aconteciam na clínica e na vida das pessoas envolvidas, pois um médico resolveu surtar e colocar em prática as narrativas que Freud sugeria. O médico surtado, construiu, em poucos dias, toda a fantasia egocêntrica de Freud, fazendo de sua visita o desfecho de um verdadeiro espetáculo do tratado freudiano. Ai... me desculpe... Mas enquanto esperava a visita de Rolnik, só pensava nisso. E olha que a amo e até criei um fã clube (um grupo no facebook) “Pelo afeto artístico e político irmanados”, fazendo repetir toda a “verdade” dita por ela. Mas será que verdades existem? Consenso? Dissenso? A gente fala tanto de que é preciso construir conceitos capazes de criar movimentos intelectuais, e, o que vejo, é uma lógica de conflito e um dissenso pirracento e duro que não quer abrir mão do que acredita, pois negociação/consenso apazigua, aquieta o movimento das coisas e isso não é legal. Pôxa... Já fiquei cansada! Será que ninguém pára pra um café?! As vezes falta acolhimento e afeto... Talvez eu não entenda muito bem o que esse povo fala, mas a sensação é sempre de cansaço, então, prefiro ficar de fora, ironizar e dar boas gargalhadas, como o Miguel fez no aquecimento “labadiano”. Bom, voltando para a performance. Lá estava eu, vestida como uma inspetora da limpeza, passava água sanitária, sabão em pó, esfregava, puxava o excesso com o rodo, secava e borrifava alfazema — o Miguel fazia essa última parte. Além cumprir o roteiro, conversava com as pessoas que me perguntavam por que estava fazendo aquilo ali. Respondia que era para o bem da cidadania higienizar os bens públicos para que “todas” as pessoas pudessem usar — inclusive velhos e crianças. Como poderia deixar meu filho dividir um banco junto com prostitutas ou mendigos? Eles concordavam com meu argumento, mas não aceitavam a ação e continuava a perguntar por que eu estava ali e eu, pacientemente, a responder da mesma forma. O incômodo só se expressou assim. Não bati boca com ninguém, ninguém me tirou dali, só insistiam com a pergunta e eu insistia com a resposta. O Miguel, mais uma vez, me ajudou a encontrar o centro da ação sem espetacularizar a coisa — era apenas uma inspetora ali a lavar. Ele pirraçou porque queria passar a alfazema toda hora e, quando chegava a vez dele, queria usar todo o produto num banco só. Teve uma hora que ele distraiu e eu adiantei a parte dele, ah..., para quê, foi um chororó de meia hora que ninguém fazia calar. Nesse meio tempo pedi licença a um mendigo para lavar o banco onde estava sentado. Ele me cedeu o banco e ficou de perto observando o serviço — tinha um sorriso nos olhos. Depois sentou no mesmo lugar e me agradeceu de forma silenciosa. Fiquei satisfeita! Por um momento saí da agitação de criar e expressar novos estados para me sentir generosa. E, para minha felicidade [ou infelicidade] a Praça da Sé, mesmo com todo o granito, fonte luminosa que canta e ser do tipo shopping center, passou a ser um lugar legal! Ih.... Será que podia sentir isso? A ordem não é a do conflito e dissenso? E depois da discussão? O que acontece? E se eu mergulhar no buraco negro que sou, será que deixarei de desertar? Mas como seguir no devir-outro sem a pausa, a introspecção? Sem o mergulho não sou nada! Não compreendo nada em mim, muito menos no outro! Ih... Tá vendo que é muito pensamento para uma cabeça só!
Com carinho,
Carol

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